Países Baixos: Protestos de agricultores expressam o impasse do capitalismo neerlandês.

Desde junho, os Países Baixos têm visto uma nova onda de protestos de 40.000 agricultores contra os planos do governo em reduzir a emissão de compostos de nitrogênio[1]. Esses protestos chegaram à mídia internacional viralizando vídeos de grandes tratores bloqueando estradas e centros de distribuição de supermercados, despejando esterco em frente às casas dos políticos. O que está por trás desses protestos, que interesses de classe eles representam e qual é a posição dos marxistas em relação a eles?

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Em outubro de 2019, os Países Baixos viram uma primeira onda de protestos, com agricultores em carreata de tratores, causando grandes engarrafamentos. Estavam protestando contra os planos do governo Mark Rutte de reduzir o número de cabeças de gado no país em 30% a fim de reduzir a emissão de compostos de nitrogênio. Muitos agricultores temiam que essa desaceleração da produção pecuária levasse muitas fazendas à falência. Nos últimos meses, esses protestos voltaram em maior escala.

A questão do nitrogênio

Os Países Baixos são um país densamente povoado e com um setor agrícola extremamente produtivo. Desde o fim da Segunda Guerra Mundial, os agricultores neerlandeses foram estimulados por sucessivos governos burgueses a aumentar a produtividade, o que fez com que os que menos produzissem fossem atropelados do mercado. Enquanto em 1950 havia 410.000 fazendas, em um país com uma população total de 10 milhões de habitantes, em 2016 esse número encolheu para 55.000, em comparação com uma população total de 17 milhões de pessoas.

O número total de trabalhadores da agricultura (agricultores, familiares e trabalhadores contratados) nesse período caiu de 580.000 para 172.000; ou de 15% a 2% da força de trabalho total. Este enorme aumento de produtividade extrapolou há muito tempo o mercado nacional. De fato, os Países Baixos são o segundo maior exportador de produtos agrícolas do mundo depois dos EUA! No entanto, o desenvolvimento do setor agrícola neerlandês teve efeitos negativos no meio ambiente, na biodiversidade e na saúde pública devido ao aumento do risco de mutação e transmissão zoonótica de vírus etc.

Um problema particular nos Países Baixos tem sido a alta emissão de compostos de nitrogênio, como amônia e óxidos de nitrogênio, produto da criação de vacas, porcos, galinhas e uso de fertilizantes artificiais. Esta indústria emitiu tantos compostos de nitrogênio que muitas reservas naturais estão sendo afetadas negativamente, com perda da biodiversidade, plantas dependentes de nitrogênio estão matando outras plantas e fungos. O nitrogênio também é um gás de efeito estufa, cujas emissões o governo Rutte se comprometeu a reduzir pela metade até o final da década. Outras fontes de emissões de nitrogênio são a indústria pesada, de construção, tráfego motorizado e tráfego aéreo.

O governo burguês de Mark Rutte líder do partido de direita “Volkspartij voor Vrijheid en Democratie” (Partido Popular para a Liberdade e Democracia), o VVD, estava sendo pressionado a conter os efeitos das emissões de nitrogênio, mas não queria compremeter os lucros. Em 2015, surgiu o Programma Aanpak Stikstof (Programa de Endereçamento do Nitrogênio), ou PAS, um plano para regular licenças para expansão agrícola, projetos de construção etc., com base no volume esperado de compostos nitrogenados emitidos.

Em 2019, o Conselho de Estado, a mais alta autoridade judicial, declarou o PAS ilegítimo. O motivo foi que usou a ‘contabilidade criativa’ para permitir que a indústria agrícola crescesse em troca de promessas de compensar as emissões de nitrogênio no futuro. Essas promessas não tinham absolutamente base alguma e o plano parecia um fraudulento esquema de pirâmide. Após esta decisão judicial, 18.000 licenças para projetos de construção e expansão de negócios foram subitamente revogadas. Isso causou grandes problemas, pois ameaçou paralisar o crescimento econômico e exacerbar uma crise de habitação. O governo decidiu então tomar medidas para diminuir o número de animais no setor agrícola (de longe, a maior fonte de emissões de nitrogênio), levando aos protestos em 2019.

A primeira onda de ações dos agricultores em 2019 foi interrompida pela crise do COVID-19 e pelos lockdowns em 2020, mas a publicação do “Mapa de Nitrogênio” em junho deu origem a uma nova onda de protestos. Este mapa oferece apontamentos aos governos provinciais sobre as áreas em que a atividade agrícola deve diminuir e em qual porcentagem.

Isso desencadeou manifestações em que agricultores saíram com tratores para as rodovias, barricadas em centros de distribuição de supermercados e bloqueios de estradas perto dos locais identificados no ‘Mapa de Nitrogênio’. Mais recentemente, os agricultores têm tomado “duras ações”, como bloqueios nas rodovias despejando lixo e queimando fardos de feno.

Está claro por que os agricultores estão zangados e é compreensível que a maioria da população neerlandesa tenha alguma simpatia por eles. Os agricultores são vistos como uma camada trabalhadora da população que recebe uma quantidade relativamente pequena do valor criado pelo setor agrícola, enquanto os intermediários e os supermercados ficam com a maior parte dos lucros. Há um sentimento entre muitos na sociedade de que os agricultores não devem ser os únicos a pagar por esta crise de nitrogênio, que o governo Rutte exacerbou através das políticas fracassadas no PAS.

Ainda assim, esse movimento de agricultores está focado apenas no governo e em suas leis. As principais organizações de agricultores não criticam os bancos e os grandes supermercados, que são os verdadeiros culpados de espremer os agricultores. O movimento simplesmente exige a manutenção do status quo, embora esteja claro que algo fundamental precisa mudar. A falta de qualquer desafio aos grandes capitalistas não surpreende, já que o movimento é financiado por grandes empresas do agronegócio, em especial os produtores de forragem para gado, como AgriFirm e ForFarmers; e equipamentos agrícolas, como o Trioliet , segundo o jornal local NOS .

Esses tubarões do mercado têm um claro interesse em combater as novas regulamentações e se recusaram a participar de negociações com o governo sobre a redução das emissões de nitrogênio. Preferem sentar-se numa sombra controlando as finanças enquanto os agricultores assumem a liderança, dando a impressão de um movimento de protesto espontâneo liderado por trabalhadores comuns. Esses parasitas não se preocupam com o meio ambiente, nem com a situação dos agricultores – eles simplesmente querem proteger seus lucros.

Sem agricultores, sem comida?

Um argumento enfatizado pelo movimento de protesto é que, com menos produção agrícola nos Países Baixos, há o risco de falta de alimentos nos supermercados neerlandeses. Na realidade, cerca de 80% da produção agrícola neerlandesa é produzida para exportação. Ao mesmo tempo, cerca de três quartos do que as famílias neerlandesas gastam em alimentos são produzidos no exterior.

Em todo o mundo, já podemos produzir alimentos o suficiente para alimentar 12 bilhões de pessoas. Não há razão que justifique alguém neste planeta morrer de fome. O fato de todos os anos milhões passarem fome não está relacionado à capacidade absoluta de produção de alimentos, mas à distribuição criminosamente desigual dentro do capitalismo mundial. Acrescente a isso o aumento mundial nos preços dos alimentos nos últimos meses, resultante da “guerra por procuração” entre OTAN e Rússia na Ucrânia, que impactou enormemente o custo de grãos, óleo de cozinha e commodities essenciais à produção de alimentos.

Atualmente, o apoio às ações dos agricultores está se deteriorando. Os atos de despejo em aterros (incluindo amianto!) e de incendiar fardos de feno nas rodovias, ao mesmo tempo que ameaçam com violência os trabalhadores que precisam se livrar deste lixo, não lhes tem gerado muita simpatia das massas, além de estarem enfrentando cisões no próprio movimento de agricultores.

A ala mais moderada em torno do grupo Land- en Tuinbouworganisatie (Organização para Agricultura e Horticultura), ou LTO, quer arrancar concessões do governo, mas está aberta a um acordo. Por outro lado, a ala de extrema-direita em torno da  Farmers’ Defence Force (Força de Defesa dos Agricultores), a FDF, está procurando um confronto duro e busca ativamente o apoio de partidos e grupos reacionários de direita.

Isso levou a um “movimento de solidariedade” composto principalmente pelos mesmos grupos e ativistas reacionários que também estavam por trás dos protestos anti-lockdown e anti-vacina em 2020-21 (Nederland in Verzet, Forum voor Democratie etc.). Depois que as medidas de controle do COVID-19 foram canceladas, eles estavam procurando um novo movimento para pular.

Uma selvagem variedade de teorias da conspiração e vídeos de fake news estão circulando, sendo compartilhados no exterior por pessoas como Donald Trump, Steve Bannon e agências de notícias reacionárias nos EUA e Canadá. Algumas conexões foram feitas com ativistas do igualmente reacionário Canada Freedom Comvoy. A associação com esses elementos de extrema-direita também está diminuindo a simpatia pelos agricultores entre a população em geral dos Países Baixos.

É notável que as forças estatais tenham usado medidas suaves ao intervir nessas ações, especialmente em comparação com a forma como a polícia agiu contra bloqueios de grupos de esquerda e ambientalistas, como a Extinction Rebellion. Em vez de esmagar os agricultores, o governo Rutte quer exaurir o movimento e, eventualmente, fazer um acordo com sua ala moderada. Esta não é uma tarefa impossível, pois o movimento dos agricultores não se opõe fundamentalmente ao sistema capitalista que Mark Rutte representa.

A posição marxista sobre o movimento

Embora entendamos que algumas pessoas da classe trabalhadora têm simpatia pelo movimento dos agricultores, temos que ser claros sobre sua natureza. O movimento dos agricultores é dirigido principalmente contra o governo e suas regulamentações e é financiado pelo grande agronegócio. Consciente ou inconscientemente, os agricultores são peões nas mãos de uma parte da classe capitalista dirigida contra outra adversária. Por isso não podemos apoiar este movimento de agricultores.

Isso não significa que os agricultores em geral sejam o principal inimigo ou que esse movimento represente uma ameaça fascista, como pensam alguns da esquerda. Embora certamente nos oponhamos aos elementos reacionários, devemos analisar esse movimento pequeno-burguês em um contexto de impasse geral do capitalismo neerlandês.

A desconfiança no governo e nas instituições estatais atingiu níveis críticos, sendo atingida por um escândalo atrás do outro. Anos de cortes nos gastos públicos levaram a problemas na saúde, educação e defasagem de creches. Há uma enorme escassez de habitação a preços acessíveis. E agora temos o problema da inflação, que em julho chegou a 11,6%, a maior em 40 anos. O governo Rutte não é capaz de resolver nada e só pode chutar a lata pela estrada. Todo o sistema está em um impasse, levando as grandes camadas da sociedade à raiva.

O problema central é que não há alternativa da classe trabalhadora ao governo Rutte. O antigo Partij van de Arbeid (Partido Trabalhista), o PvdA, está procurando se fundir com o de esquerda-liberal GroenLinks (Esquerda Verde), o que mostra claramente como eles se tornaram fracos depois de décadas em cumplicidade com a austeridade. O partido reformista de esquerda Socialistische Partij (Partido Socialista) expulsou burocraticamente a maior parte de sua esquerda remanescente e degenerou em um partido chauvinista que quer atrair eleitores da extrema direita copiando suas posições anti-imigração e, portanto, não atrai nem a classe trabalhadora avançada nem os radicais juventude.

Nesse vácuo, a ‘oposição’ a ​​Rutte aparece principalmente na forma de demagogos burgueses, como Pieter Omtzigt (um político democrata-cristão “ficha limpa” que rompeu com seu partido como delator do escândalo do auxílio-creche ) e Caroline van der Plas (líder do BoerBurgerBeweging, ou Movimento Cidadão Agricultor, que afirma representar “o campo”).

O campo político entravado repercute alguma pressão na indústria. No momento, há escassez de mão de obra, levando a uma posição mais favorável para a classe trabalhadora. Houve algumas greves de trabalhadores no último período, incluindo uma grande greve no Aeroporto Schiphol. A burocracia sindical, no entanto, está tentando chegar a um “acordo social” com os patrões e o governo, para compensar o aumento do nível de inflação. Porém, é claro que os patrões não estão dispostos a fazer isso, o que já gerou atritos dentro da Federatie Nederlandse Vakbeweging (Federação Neerlandesa de Sindicatos), a FNV. Enquanto a burocracia da FNV tenta criminalmente reter os trabalhadores, notavelmente a luta de classes está na agenda dos Países Baixos nos próximos anos.

Com isso em mente, devemos ressaltar que o movimento operário, depois de elaborar um programa militante para os próprios trabalhadores, deve vir também com medidas para trazer parte dos agricultores (e da classe média em geral) para o nosso lado .

A maioria dos agricultores neerlandeses são empresários pequeno-burgueses que trabalham por conta própria. Eles estão sendo espremidos pelas grandes redes de supermercados, que ficam com a maior parte do lucro dos produtos agrícolas finais, e pelo Rabobank, responsável por 80% dos empréstimos agrícolas. A classe trabalhadora e os agricultores têm inimigos comuns no grande capital.

A única solução para os atuais problemas de nitrogênio e outras questões na agricultura neerlandesa é a integração da agricultura em um plano racional de produção. Ao nacionalizar os grandes agronegócios, o Rabobank e os supermercados, todos sob controle democrático dos trabalhadores, será possível ajudar os agricultores a tornar sua produção sustentável, mas também fornecer empréstimos acessíveis e preços decentes para seus produtos. Isso significaria que eles não precisam temer por sua própria situação financeira e de suas famílias.

Além disso, os outros poluidores precisam ser combatidos. Ao nacionalizar grandes grupos industriais, podemos investir na sustentabilidade da produção de seus setores também, enquanto investimentos públicos maciços em conexões ferroviárias rápidas e de transporte público podem reduzir as emissões de nitrogênio dos carros e do tráfego aéreo.

O movimento atual acabará por chegar a um beco sem saída e será forçado a fazer acordos, o que não resolverá nada. Somente um movimento revolucionário para derrubar o capitalismo e substituí-lo por um planejamento democrático racional pode resolver os problemas que afetam tanto os trabalhadores quanto os agricultores; proporcionando uma existência digna e digna para ambos, protegendo o meio ambiente para as gerações futuras.

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