“Por que não houve uma revolução?”

“Assim como na guerra, ninguém faz uma revolução de boa vontade. A diferença consiste em que, numa guerra, o papel decisivo é o da coação; numa revolução não há coação, a não ser a das circunstâncias. A revolução acontece quando não há outro caminho” (Trotsky, A História da Revolução Russa, Capítulo 43, ‘A Arte da Insurreição’)

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“Tudo o que existe merece perecer”

Hegel explicou que tudo o que existe merece perecer. Ou seja, tudo o que existe contém em si as sementes de sua própria destruição. Esse é realmente o caso. Por muito tempo, parecia que o capitalismo estava para ficar. O estado de coisas existente era inquestionável para a maioria das pessoas. As suas instituições pareciam sólidas. Mesmo as crises mais graves acabaram sendo superadas, aparentemente sem deixar vestígios.

Mas as aparências enganam. A dialética ensina-nos que as coisas se transformam nos seus opostos. Após um longo período de estagnação política, os desenvolvimentos dos últimos anos representam uma rutura fundamental na situação à escala mundial.

A crise de 2008 marcou um giro brusco em toda a situação. Na realidade, os burgueses nunca conseguiram recuperar-se dessa crise. Ressaltámos na época que toda a tentativa da burguesia de restabelecer o equilíbrio económico serviria apenas para destruir o equilíbrio social e político. E isso acabou por ser literalmente o caso. A burguesia recorreu a medidas desesperadas para resolver aquela crise, gastando quantias sem precedentes.

Isso foi repetido a um nível muito mais alto quando a pandemia levou a economia mundial a uma recessão em 2020. Conseguiram evitar um colapso imediato, mas apenas à custa de criar novas e insuperáveis contradições. Estas estão agora vindo à superfície por toda a parte.

O sistema foi salvo pelos enormes gastos do Estado, apesar do consenso anterior entre os burgueses de que o Estado não deveria interferir no mercado. Mas o dinheiro, como dizem, não cresce nas árvores. O resultado dessa orgia de gastos, usando vastas somas de dinheiro que não existiam, foi o de construir uma gigantesca montanha de dívidas. A dívida mundial total está agora a aproximar-se 300 triliões de dólares.

Isso não tem nenhum precedente histórico em tempos de paz. É verdade que a classe dominante gastou somas igualmente grandes na Segunda Guerra Mundial, que foram liquidadas no prolongado período de crescimento económico que se seguiu à guerra. No entanto, isso foi possível devido a um encadeamento peculiar de circunstâncias, que não se aplicam hoje e dificilmente se repetirão no futuro.

O efeito inevitável dessa montanha de dívidas é a inflação, que agora se faz sentir no aumento dos preços das commodities, combustíveis, gás e eletricidade, atingindo os mais pobres.

Um novo período de instabilidade econômica, social e política é a consequência inevitável. Os recentes acontecimentos no Cazaquistão foram um aviso do que está por vir. Eles podem ser replicados a qualquer momento num país após o outro.

A crise atual não é meramente econômica e financeira, também tem um caráter social e político, até mesmo moral e psicológico. É caracterizada por uma instabilidade sem precedentes em todos os países.

O sistema capitalista passou pela mais grave crise económica em 300 anos. Isso é admitido por todos os estrategistas sérios do capital. Além disso, milhões de pessoas pereceram em consequência da pandemia, que ainda não foi superada, apesar das reivindicações da burguesia.

Destes fatos seria uma questão simples deduzir que as condições para a revolução socialista já existem em escala mundial. Isso é perfeitamente verdade. Num sentido geral, isso é verdade há muito tempo. Mas as perspetivas marxistas não se esgotam nas generalizações.

Não basta repetir afirmações gerais sobre a inevitabilidade da revolução socialista. É preciso saber explicar porque é que isso é verdade. Hegel apontou que é tarefa da ciência não acumular uma massa de detalhes, mas adquirir uma perceção racional. Essa é precisamente a tarefa dos marxistas.

Muitas vezes, as pessoas de esquerda e até mesmo alguns marxistas recorrem à citação de listas intermináveis de estatísticas económicas, que podem ser facilmente lidas nas páginas da imprensa burguesa. Então, no final, chegam à conclusão de que “o socialismo é a resposta” ou palavreiam nesse sentido. Isso pode ser perfeitamente verdadeiro, mas é uma conclusão que não está enraizada na lista de fatos e números e, portanto, tem pouca ou nenhuma validade. Tal método mecânico é meramente indicativo de preguiça mental e produz uma reação de tédio e impaciência naqueles que já ouviram tudo isso antes.

Formulações e esquemas abstratos não nos ajudarão a compreender as realidades concretas da fase que estamos atravessando, nem a mera repetição de slogans gerais sobre a crise do capitalismo, que perdem toda a sua força e relevância pelo simples fato de serem repetidos e reduzidos a um clichê vazio e sem sentido.

Devemos acompanhar a situação como ela se desenvolve concretamente em cada etapa. E somos obrigados a responder à pergunta, que deve ter ocorrido a muitos: vocês, os marxistas, dizem que o sistema capitalista está em crise, e isso é obviamente verdade. Mas porque não houve uma revolução?

A pergunta pode parecer ingênua. Mas é mais séria do que se imagina. E merece uma consideração cuidadosa. Se quisermos ser sinceros, mesmo algumas pessoas que se dizem marxistas fazem a mesma pergunta: porque, se há uma crise tão profunda, as massas não se levantaram já?

Refiro-me aos chamados ativistas, que exibem uma atitude de supremo desprezo pelas ideias e pela teoria, e que imaginam que, correndo como galinhas sem cabeça, gritando pela revolução, de alguma forma levarão as massas à ação.

Lembro-me bem daqueles líderes estudantis de olhos arregalados na Paris de 1968, e vejo-os agora: burgueses orgulhosos e barrigudos que zombam dos revolucionários em geral e, como consequência, cospem no seu próprio passado. Confesso que essa transformação não me surpreendeu. Já estava muito claro em Maio de 1968. Eles não entendiam nada então, e entendem menos ainda agora.

Esses “ativistas” vivem impacientes com as massas, e quando sua repetição constante de slogans “revolucionários” vazios – que lembram os encantamentos murmurados por um velho e cansado pároco de alguma igreja – não obtêm o resultado desejado, eles culpam a classe trabalhadora, ficam desmoralizados e caem na inatividade. Ativismo irracional e apatia impotente são apenas os dois lados da mesma moeda.

Não é tarefa dos marxistas colocar um termômetro sob a língua da classe trabalhadora para tentar determinar quando ela estará pronta para se mover. Tal termômetro nunca existiu e nunca existirá. E os eventos não podem ser acelerados pela impaciência.

A situação está se movendo muito lentamente para ti? Bem, todos nós gostaríamos que ela se desenvolvesse mais rapidamente. Mas essas coisas levarão tempo e a impaciência é nosso inimigo mais perigoso. Não há atalhos! Trotsky alertou que tentar colher onde não se plantou levará inevitavelmente a erros, sejam de caráter ultraesquerdista ou oportunista. E se tu tentares gritar mais alto que a força das tuas cordas vocais, simplesmente perderás a voz.

No entanto, se depois de leres este pequeno artigo, realmente insistires em saber quando os trabalhadores se moverão para derrubar o sistema capitalista, estou disposto a fornecer uma resposta muito precisa. Os trabalhadores se moverão quando estiverem prontos. Nem um minuto antes. E nem um minuto depois.

Geologia e Sociologia

O simples fato de alguém se perguntar por que não houve uma revolução revela mais do que apenas perplexidade. Serve para expor a completa ignorância tanto das leis elementares da revolução quanto da maneira pela qual as massas adquirem consciência. Não são processos automáticos ou mecânicos e, como veremos, ambos estão intimamente relacionados.

Comecemos, como sempre, pelos princípios fundamentais. A dialética afirma que existe um estreito paralelo entre a sociedade e a geologia. A evidência de nossos sentidos diz-nos que o chão parece sólido e firme sob nossos pés (“firme como uma rocha”, como diz o ditado). Mas a geologia ensina-nos que as rochas não são firmes e que o solo está constantemente a mover-se sob os nossos pés.

Superficialmente, tudo pode parecer pacífico e confortavelmente sólido. Mas abaixo da superfície, existe um vasto oceano de rocha líquida em ebulição, temperaturas e pressões inimagináveis que buscam um ponto fraco de escapatória na superfície da Terra. Eventualmente, a força elementar da pressão vinda de baixo aumenta gradualmente até um ponto em que as barreiras são rompidas, e o magma finalmente irrompe à superfície numa explosão violenta, concretizando as colossais forças reprimidas numa erupção vulcânica.

Temos aqui uma analogia muito precisa com a sociedade humana. Na superfície, tudo está calmo, apenas perturbado por tremores ocasionais, que passam, deixando o status quo mais ou menos imperturbável. Os defensores do status quo deixam-se eles próprios enganar pela ideia de que está tudo bem. Mas, sob a superfície, há descontentamento, amargura, ressentimento e raiva, que vão-se acumulando lentamente até atingir o ponto crítico onde um terremoto social se torna inevitável.

O ponto exato em que essa mudança ocorrerá é impossível de ser previsto, assim como é impossível prever com precisão um terremoto, apesar de todos os avanços da ciência e tecnologia modernas. A ciência informa-nos que a cidade de São Francisco foi construída sobre uma falha na crosta terrestre conhecida como Falha de San Andreas. Isso significa que, mais cedo ou mais tarde, aquela cidade sofrerá um terremoto cataclísmico.

Embora ninguém saiba quando ocorrerá, isso é líquido e certo. E é igualmente líquido e certo que as explosões revolucionárias ocorrerão quando a burguesia e os seus estrategas, economistas e políticos contratados menos esperarem.

Numa frase maravilhosamente clara, Trotsky refere-se ao “processo molecular da revolução”, que ocorre de forma ininterrupta nas mentes dos trabalhadores. No entanto, como esse processo é gradual e não afeta a fisionomia política geral da sociedade, ele passa despercebido para todos – menos para os marxistas.

Mas nem todos os que se dizem marxistas compreenderam os princípios e métodos mais elementares do marxismo. Vimos isso na França, em Maio de 1968, quando os sectários ignorantes como Mandel tinham descartado inteiramente os trabalhadores franceses como “aburguesados” e “americanizados”. Menos de quatro milhões de trabalhadores eram sindicalizados, mas 10 milhões de trabalhadores ocuparam as fábricas na maior greve geral revolucionária da história. No entanto, se tais explosões podem levar a uma revolução socialista bem-sucedida é já outra questão.

Em 1968, os trabalhadores franceses tinham o poder nas suas mãos. O presidente De Gaulle informou ao embaixador americano: “O jogo acabou. Em poucos dias os comunistas estarão no poder”. E isso era perfeitamente possível. Se não aconteceu, a culpa não foi da classe trabalhadora, que fez tudo ao seu alcance para fazer uma revolução, mas da liderança. Esta é a questão central a que voltaremos mais adiante.

Condições para uma revolução

Para ter êxito, uma revolução socialista exige certas condições. E estas têm, ao mesmo tempo, um caráter objetivo e subjetivo.

O mero fato de uma crise económica – por si só – não é suficiente para fazer uma revolução. Nem a queda dos padrões de vida. Leon Trotsky uma vez observou que se a pobreza fosse a causa das revoluções, as massas estariam sempre em estado de revolta.

Alguns sectários agem como se as massas estivessem de facto em permanente estado de revolta, sempre prontas para a revolução. Mas esse não é o caso. Que o sistema capitalista está em profunda crise é um facto evidente que não requer demonstração. No entanto, como isso é percebido pelas massas é uma questão totalmente diferente. As ilusões que foram construídas ao longo de muitos anos e décadas não serão facilmente desalojadas. Uma série de choques profundos será necessária para destruir o equilíbrio existente.

É verdade que, objetivamente falando, as condições para uma revolução socialista não apenas existem, mas estão amadurecendo há algum tempo. Na verdade, elas estão um pouco maduras demais. Mas a história humana é feita pelas ações de homens e mulheres. E, como materialistas, sabemos que a consciência humana em geral não é revolucionária, mas profundamente conservadora. A mente humana é extremamente avessa a qualquer tipo de mudança.

Este é um mecanismo psicológico de autodefesa profundamente arraigado que herdamos de um passado remoto, que há muito foi apagado da nossa memória, mas que deixa uma marca indelével no nosso subconsciente. É uma lei enraizada no desejo de autopreservação.

Como resultado, a consciência das massas sempre tende a ficar para detrás dos acontecimentos, e esse atraso pode ser bastante considerável, sendo condicionado pelo conjunto das experiências anteriores. Este é um facto que devemos ter sempre em mente ao analisarmos a situação atual.

Existe um antigo provérbio chinês que nos diz que o maior infortúnio que pode acontecer a um homem é viver em tempos interessantes. Quando o chão começa a tremer sob os nossos pés; quando os antigos templos e palácios desmoronam – essa é, em princípio, uma experiência muito perturbadora.

As pessoas vão correr de cá para lá e de lá para cá, tentando encontrar segurança. Mas, da velha maneira, nenhuma segurança pode ser encontrada. Portanto, os velhos caminhos devem ser abandonados e os novos devem ser encontrados. Choques profundos já começaram a abalar a confiança das pessoas na sociedade existente.

No entanto, também é um fato inegável que a maioria das pessoas se sente mais segura e confortável com o ambiente familiar do mundo em que nasceram e viveram a maior parte de suas vidas. Mesmo quando os tempos são maus, elas apegam-se obstinadamente à crença de que amanhã será melhor e que os “tempos normais” acabarão por voltar.

E quando os revolucionários apontam a necessidade de uma revolução, sua primeira reação é balançar a cabeça e dizer: “Melhor o Diabo que conheces do que o Diabo que não conheces”. E essa é uma reação perfeitamente natural. A revolução é um salto no escuro que os levará… sabe-se lá para onde?

A força de inércia

A classe dominante tem em suas mãos armas muito poderosas para defender sua riqueza e seu poder: o estado, o exército, a polícia, o sistema judicial, as prisões, os média e todo o sistema educativo. Mas a arma mais poderosa do seu arsenal não é nada disso. É o poder da rotina, que é o equivalente social da força de inércia na mecânica.

A força de inércia é uma lei bem conhecida que se aplica a todos os corpos, e que afirma que eles sempre permanecerão no seu estado, seja de repouso ou de movimento, a menos que alguma causa externa seja introduzida para fazê-los alterar esse estado, um momento que se chama de resistência ou ação. Esta mesma lei se aplica à sociedade.

O capitalismo gera hábitos de obediência ao longo da vida, que são facilmente transferidos da escola para a linha de produção da fábrica e daí para o quartel.

O peso morto da tradição e da rotina diária paira sobre o cérebro das pessoas e as conduz à obediência. Isso significa que as massas, pelo menos em primeira instância, sempre seguirão o caminho de menor resistência. Mas, no final, as marteladas dos grandes acontecimentos obrigá-las-ão a começar a questionar os valores, a moralidade, a religião e as crenças que moldaram seu pensamento durante toda a vida.

São necessários eventos colossais para sacudir as massas dessa rotina destruidora de mentes, forçá-las a tomar conhecimento de sua posição real, questionar as velhas crenças que elas consideravam inquestionáveis e tirar conclusões revolucionárias. Isso inevitavelmente leva tempo. Mas, no curso de uma revolução, a consciência das massas experimenta um enorme ímpeto. Pode ser completamente transformada no espaço de 24 horas.

Vemos o mesmo processo em cada greve. Frequentemente ocorre que os trabalhadores mais avançados ficam surpresos quando alguns dos trabalhadores mais atrasados e conservadores são repentinamente transformados nos militantes mais ativos e enérgicos.

Uma greve é apenas uma revolução em miniatura. E em qualquer greve a importância da liderança é primordial no processo de desenvolvimento da consciência. Muitas vezes, um único discurso ousado de apenas um militante num comício pode significar o êxito ou o fracasso de uma greve. E isto nos leva à questão central.

O fator subjetivo na história

Os movimentos revolucionários espontâneos das massas revelam o seu poder colossal. Mas apenas como um poder potencial, não real. Na ausência do fator subjetivo, mesmo o movimento de massas mais tempestuoso não pode resolver os problemas mais importantes da classe.

Aqui devemos entender que há uma diferença fundamental entre a revolução socialista e as revoluções burguesas do passado. Ao contrário duma revolução burguesa, uma revolução socialista requer o movimento consciente da classe trabalhadora, que não deve apenas tomar as rédeas do poder do Estado em suas mãos, mas também, desde o início, assumir o controle consciente das forças produtivas.

Através do mecanismo de controle dos trabalhadores sobre as fábricas, prepara-se o caminho para uma economia planificada socialista administrada democraticamente. Esse não foi o caso das revoluções burguesas do passado, uma vez que a economia capitalista de mercado não requer nenhum planejamento ou intervenção consciente de qualquer natureza.

O capitalismo surgiu historicamente de forma espontânea, como consequência da evolução das forças produtivas sob o feudalismo. As teorias dos líderes revolucionários burgueses, na medida em que existiam, eram apenas um reflexo inconsciente das exigências da nascente burguesia, de seus valores, religião e moralidade.

A estreita relação entre o protestantismo (e especialmente o calvinismo) e os valores da nascente burguesia foi exposta em grande detalhe por Max Weber, embora, como idealista, ele virasse a relação de cabeça para baixo.

Um século depois, na França, o racionalismo do Iluminismo preparou teoricamente o terreno para a Grande Revolução Francesa, que proclamou ousadamente o domínio da Razão, enquanto, na prática, preparava o terreno para o domínio da burguesia.

Desnecessário será dizer que nem nos seus primeiros trajes religiosos, nem quando mais tarde se vestiu com o esplêndido manto da Razão, as ideias principais representaram verdadeiramente os interesses brutos, materialistas e gananciosos da burguesia. Pelo contrário, esses disfarces eram absolutamente necessários como meio de mobilizar as massas populares para se rebelarem contra a velha ordem enquanto lutavam sob a bandeira dos seus futuros senhores.

Na medida em que essas teorias não refletiam adequadamente (ou mesmo contradiziam) os interesses da classe burguesa em ascensão, elas foram descartadas sem cerimônia e substituídas por outras ideias que se ajustavam ao novo sistema social de maneira mais adequada.

Nos estágios iniciais da Revolução Inglesa, Oliver Cromwell teve que afastar os elementos burgueses para completar o derrube da velha ordem monárquica apoiando-se nos elementos plebeus e semiproletários mais revolucionários. Ele defendeu o Reino de Deus na terra para despertar as massas.

Mas, tendo cumprido essa tarefa, ele voltou-se contra a esquerda, esmagou os “niveladores” e abriu as portas para a burguesia contrarrevolucionária que procedeu a um compromisso com o rei e então realizou a chamada Revolução Gloriosa de 1688, que finalmente estabeleceu o domínio da burguesia. As velhas ideias dos puritanos foram descartadas e eles foram forçados a emigrar para as costas do Novo Mundo para praticar suas crenças religiosas.

Um processo análogo pode ser observado na Revolução Francesa, onde a ditadura revolucionária dos jacobinos, apoiada nas massas semiproletárias dos sans-culottes parisienses, foi derrubada primeiro pela reação termidoriana e pelo Diretório, em seguida pelo Consulado e pela ditadura de Napoleão Bonaparte e, finalmente, pela restauração dos Bourbons após a Batalha de Waterloo. A vitória final da burguesia francesa só foi assegurada após a revolução de 1830 e a revolução proletária derrotada de 1848.

A Revolução Russa

O papel crucial do fator subjetivo pode ser mostrado muito claramente na Revolução Russa. Lenin escreveu em 1902:

“Sem teoria revolucionária não pode haver movimento revolucionário. Não se pode insistir em demasia nessa ideia num momento em que a pregação da moda do oportunismo anda de mãos dadas com uma paixão pelas formas mais estreitas de atividade prática”. (V. I. Lenin, Que fazer?, Wellred Books, 2018, p. 26.)

E acrescentou que “o papel de combatente de vanguarda só pode ser cumprido por um partido que se guie pela teoria mais avançada”. (Obra citada, p. 27.)

Não foi o que aconteceu com a revolução burguesa, pelas razões que já expusemos. Mas foi absolutamente necessário para o êxito da revolução socialista, como vimos em 1917.

A Revolução de Fevereiro ocorreu sem nenhuma liderança revolucionária consciente. Os trabalhadores e soldados (camponeses de uniforme) mostraram que eram fortes o suficiente para derrubar com êxito o regime czarista que governava a Rússia durante séculos. No entanto, eles não tomaram o poder nas suas próprias mãos. Em vez disso, tivemos a dualidade de poder que durou até que os sovietes finalmente tomaram o poder em Novembro, sob a liderança dos bolcheviques.

Porque é que os trabalhadores não tomaram o poder em Fevereiro? Claro, pode-se responder a essa pergunta com todos os tipos de argumentos “inteligentes”. Mesmo alguns bolcheviques afirmaram que a razão residia no fato de que o proletariado tinha que obedecer à “lei de ferro das etapas históricas”, que não podia “saltar Fevereiro” e que tinha que “passar pela etapa da revolução burguesa”. Na realidade, essas pessoas estavam tentando encobrir sua própria covardia, confusão e impotência apelando para os “fatores objetivos”. A essas pessoas, Lenin respondeu com desdém:

Por que eles não tomam o poder? Steklov diz: por esta razão e por aquela. Isso não faz sentido. O facto é que o proletariado não está suficientemente organizado e consciente de classe. Isso deve ser admitido: a força material está nas mãos do proletariado, mas a burguesia revelou-se preparada e consciente de classe. Este é um facto monstruoso, e deve ser franca e abertamente admitido e deve-se dizer ao povo que eles não tomaram o poder porque eram desorganizados e não eram conscientes o suficiente”. (Lenin, ‘Relatório em uma reunião de delegados bolcheviques à Conferência Pan-Russa dos Sovietes de Deputados dos Trabalhadores e Soldados’, 4 de abril de 1917, Collected Works, vol. 36, p. 437.)

Sejamos claros. Sem a presença do Partido Bolchevique – na verdade, sem a presença de dois homens, Lenin e Trotsky – a Revolução de Outubro nunca teria acontecido, teria sido abortada e desembocaria numa contrarrevolução e regime fascista.

Em outras palavras, o poder da classe trabalhadora – que é um fato – permaneceria apenas como potencial. E isso nunca é suficiente. Essa é a importância colossal do fator subjetivo na história.

Colapso do centro

Hoje, levantamento revolucionários estão implícitos em toda a situação. Eles ocorrerão, como a noite segue o dia, quer um partido revolucionário esteja presente ou não. Mas na guerra entre classes, assim como nas guerras entre nações, a importância de bons generais é um fator decisivo. E aí está o problema.

As massas estão-se esforçando para encontrar uma saída deste pesadelo. Eles olham para um partido e um líder após o outro, descartando um após o outro no caixote de lixo da história. Isso explica a extrema instabilidade da vida política em todos os países no momento. O pêndulo político oscila violentamente para a direita, depois para a esquerda.

A vítima principal é aquele animal peculiar, o centro. Isso é motivo de séria preocupação entre os estrategas do capital, porque o centro representa uma espécie de fulcro que equilibra os extremos de esquerda e direita e os neutraliza. É aquela paisagem vaga onde todas as linhas claras de demarcação são borradas ao ponto da nulidade, onde a retórica vazia e as promessas vagas passam por moeda real, ou pelo menos por notas promissórias que podem ser resgatadas em alguma data futura (não especificada).

Durante muito tempo, o centro foi representado nos Estados Unidos por dois partidos, o Republicano e o Democrata, e na Grã-Bretanha pelos Partidos Trabalhista e Conservador, que eram mais ou menos indistinguíveis. Mas tudo isso tinha uma base material.

No período do pós-guerra, quando o capitalismo desfrutava de uma ascensão econômica sem precedentes, os partidos trabalhista e social-democratas concederam reformas importantes, como o serviço nacional de saúde gratuito na Grã-Bretanha. Esse período há muito passou para a história.

Hoje em dia, a classe dominante não pode sequer permitir que as velhas conquistas continuem, e muito menos conceder novas reformas. A velha segurança foi-se e com ela, a velha estabilidade. Em todos os lugares há turbulência e crises. A crise do capitalismo é a crise do reformismo.

O papel da “esquerda”

A crise do reformismo e o colapso do estalinismo significam que há um vácuo na esquerda. E como a natureza abomina o vácuo, ele deve ser preenchido. Como a corrente marxista carece de forças para preenchê-lo, esse espaço será ocupado pelos reformistas de esquerda.

Por razões históricas com as quais não podemos lidar aqui, as verdadeiras forças do marxismo retrocederam muito. Dada a fragilidade do fator subjetivo, é inevitável que, quando as massas despertarem para a vida política, elas se voltem para as organizações existentes e líderes conhecidos, especialmente aqueles com credenciais de “esquerda”.

O período atual verá, portanto, o surgimento de tendências reformistas de esquerda e até “centristas”. Mas também estes serão postos à prova pelas massas e, em muitos casos, terão um caráter meramente efémero.

Reconhecendo este fato, a corrente marxista deve ter uma atitude flexível em relação às esquerdas, apoiando-as na medida em que estejam dispostas a lutar contra os reformistas de direita, mas sempre criticando-as quando vacilam, fazem concessões inaceitáveis e recuam diante das pressões da opinião pública burguesa e dos traidores de direita.

O desejo de alcançar uma mudança fundamental na sociedade não pode se limitar a uma compreensão clara do programa e das perspetivas. Envolve também um elemento de força de vontade, ou vontade de poder: ou seja, a vontade consciente de vencer, de conquistar, de varrer todos os obstáculos e mudar a sociedade.

Isso, por sua vez, deve ser baseado numa visão de futuro e numa confiança total na capacidade da classe trabalhadora para mudar a sociedade. Mas os reformistas de esquerda não têm nenhum dos dois. Portanto, eles constantemente fogem do objetivo central.

Eles prevaricam, procrastinam, buscam compromissos, que é apenas outra palavra para rendição, pois buscar compromisso onde nenhum é possível, construir pontes entre interesses de classe irreconciliáveis, é tentar fazer a quadratura do círculo. Dúvidas, ambiguidade e indecisão são sua essência interior. O derrotismo está embutido na sua própria alma e psique.

Naturalmente, eles não podem admitir isso, nem para si mesmos. Pelo contrário, eles se convencem de que o seu é o único caminho verdadeiro e que qualquer outro caminho levará inevitavelmente ao desastre. Eles encontram mil razões para se enganarem e, estando tão convencidos, estão melhor equipados para enganar os outros.

Em muitos casos, os esquerdistas são pessoas honestas. Oh sim, eles estão completamente convencidos da justiça de seus argumentos. E um reformista de esquerda sincero pode causar muito mais danos do que um insincero. A traição deles não é deliberada ou consciente. As massas depositam toda a sua confiança neles e, portanto, são ainda mais seguramente conduzidas às garras da derrota.

Martov era, sem dúvida, um homem muito honesto e sincero, e também muito capaz e inteligente. No entanto, ele desempenhou um papel muito negativo no destino da Revolução Russa.

O caso da Grécia

No tempestuoso período da década de 1930, as organizações de massas da social-democracia estavam em ebulição. A crise econômica que se seguiu à quebra de Wall Street em 1929, o desemprego em massa resultante e a ascensão do fascismo na Europa produziram o fenômeno conhecido pelos marxistas como “centrismo”, que, para usar as palavras de Trotsky, era “um nome geral para as mais variadas tendências e agrupamentos espalhados entre o reformismo e o marxismo”.

No entanto, no período atual, o movimento revolucionário na sociedade geralmente não se refletiu nas fileiras da social-democracia da mesma forma como ocorreu na década de 1930. Movimentos como PODEMOS na Espanha, SYRIZA na Grécia e, em menor escala, o movimento por detrás de Mélenchon na França, refletiram parcialmente o crescente descontentamento. Mas todos eles tinham uma posição política muito confusa e são apenas um pálido reflexo das correntes centristas dos anos 1930.

No caso da Grécia, sob condições de extrema crise social, SYRIZA, um pequeno partido de esquerda que emergiu de uma divisão de direita do Partido Comunista Grego (KKE), cresceu rapidamente às custas do tradicional partido reformista de massas PASOK, que estava largamente desacreditado aos olhos das massas. O SYRIZA foi levado ao poder em janeiro de 2015 com uma vitória esmagadora sobre a Nova Democracia de direita.

Após a crise de 2008, a Grécia estava à beira da falência. Estava entre os países mais severamente afetados pela crise da dívida soberana da Europa. A UE, o FMI e o Banco Central Europeu ofereceram-se para socorrer a Grécia, mas à custa da imposição de medidas brutais de austeridade. Isso levantou um movimento massivo das massas contra a austeridade. Em contraste com os governos da Nova Democracia e do PASOK, o SYRIZA prometeu o fim da austeridade. Mas sobre a base da crise capitalista, isso era impossível.

Os patrões europeus viram isso como uma ameaça. Eles tiveram que esmagar o SYRIZA, como um aviso para outros, como PODEMOS na Espanha, que poderiam se sentir tentados a seguir o seu exemplo. Eles estavam determinados a minar e destruir o governo de esquerda por todos os meios possíveis. Nessas condições, era absolutamente correto convocar um referendo e mobilizar as massas a favor do governo e contra a austeridade.

As condições de resgate oferecidas pelos líderes da UE foram rejeitadas de forma decisiva no referendo de 5 de julho de 2015, quando 61% dos eleitores votaram “NÃO”. Diante desse resultado retumbante, quem ousará duvidar do espírito de luta da classe trabalhadora grega? Não apenas os trabalhadores, mas todas as camadas da população foram mobilizadas para uma luta. Todas as camadas, exceto aquelas que deveriam dar uma liderança.

Se Tsipras fosse marxista, poderia ter usado o movimento para mudar a sociedade, chamando os trabalhadores a ocupar os bancos e as fábricas. O povo da Grécia estaria preparado para aceitar as dificuldades, como os trabalhadores russos estavam preparados para aceitá-las após a revolução de 1917.

Uma política revolucionária, apoiada por um apelo internacionalista, teria um efeito eletrizante sobre os trabalhadores do resto da Europa e do mundo. As massas na Espanha, Itália, França e em outros lugares teriam respondido entusiasticamente a um apelo de solidariedade internacional do povo sitiado da Grécia. Manifestações e greves ter-se-iam seguido, forçando os banqueiros e capitalistas à defesa e abrindo as portas para possibilidades revolucionárias em toda parte.

A questão foi colocada à queima-roupa: ou a luta até o fim ou uma derrota ignominiosa. Mas os reformistas de esquerda nunca lutam até o fim. Eles sempre procuram o caminho de menor resistência e procuram um compromisso com a classe dominante. Os negociadores de SYRIZA tentaram jogar com as palavras, prevaricar e oferecer soluções intermediárias que não resolveram nada. Mas o outro lado não estava interessado num acordo.

No final, a burguesia europeia pagou seu bluff. Confrontado com uma escolha clara de luta ou rendição, Tsipras escolheu o último curso. Ele aceitou condições muito mais duras do que aquelas que haviam sido tão decisivamente rejeitadas pelo povo grego no referendo. Após essa traição, Tsipras e sua equipa aceitaram servilmente os ditames de Bruxelas e Berlim. A onda de raiva foi seguida por desilusão e desespero. Essa é a consequência inevitável do reformismo de esquerda.

PODEMOS

Na Espanha, PODEMOS, como SYRIZA, tornou-se uma força de massas num curto espaço de tempo, refletindo o desejo ardente de mudança por parte das massas que buscavam uma rutura total com o passado.

Os principais líderes do PODEMOS foram influenciados pela Revolução Bolivariana na Venezuela. Mas foram completamente incapazes de absorver as lições de sua força – a necessidade de mobilizar as massas com uma ousada mensagem revolucionária.

Em vez disso, copiaram apenas o lado mais fraco do Movimento Bolivariano: sua falta de clareza teórica, suas mensagens ambíguas e a sua recusa em levar a revolução até o fim. Numa palavra, eles copiaram as características negativas que acabaram levando ao naufrágio da Revolução Venezuelana.

As esperanças de milhões de pessoas foram despertadas pelo PODEMOS. Graças à retórica radical de seu líder, Pablo Iglesias, PODEMOS passou duma formação desconhecida para o primeiro lugar nas pesquisas de opinião. Mas quanto mais se aproximavam do poder, mais Pablo Iglesias e os outros líderes de PODEMOS suavizavam a sua mensagem.

Em vez de lutar para ultrapassar o social-democrata PSOE pela esquerda, eles se contentaram em aceitar cargos ministeriais como parceiros minoritários num governo de coligação com o PSOE. Ao invés de uma rutura radical com o capitalismo, eles participaram de um governo que via como sua principal tarefa administrar a crise do capitalismo espanhol.

Em troca de algumas pastas ministeriais, Unidas Podemos (UP), como é chamado hoje, tornou-se corresponsável por um governo que enviou a tropa de choque contra os metalúrgicos em greve em Cádis e agora administra fundos europeus, que vêm com regras de austeridade em anexo.

Como resultado, o apoio à UP caiu, o partido está em constante crise e perdeu a maior parte de sua base ativista. Agora é uma mera casca do que prometia ser no início. O potencial revolucionário inerente ao movimento foi desperdiçado levando a uma desmoralização generalizada entre os trabalhadores e jovens mais avançados. Este é o resultado lógico do reformismo de esquerda.

As lições de Corbyn

O sucesso mais marcante do reformismo de esquerda foi a eleição de Jeremy Corbyn como líder do Partido Trabalhista. O ponto principal aqui é que Corbyn aproveitou os sentimentos subterrâneos de descontentamento com o establishment e o status quo. Ele obteve uma vitória decisiva, recebendo quase 60% dos votos nas eleições para a liderança. De repente, as comportas foram abertas e centenas de milhares de novos membros se juntaram ao partido para apoiá-lo. Eles estavam prontos e dispostos a lutar contra a ala direita.

A classe dominante ficou apavorada. Estavam reunidas as condições para uma transformação radical do Partido Trabalhista. Havia planos para introduzir a re-seleção obrigatória dos parlamentares trabalhistas, forçar a revogação e chamar eleições parciais de parlamentares que saíssem da linha e estavam sendo consideradas medidas para consolidar os poderes dos militantes. A direita ficou desesperada. Vários parlamentares Blairistas deixaram o partido.

No entanto, os reformistas de direita tiveram o apoio da classe dominante e dos meios de comunicação de massa, que organizaram uma campanha feroz contra Corbyn com a intenção de forçá-lo a renunciar. O resultado foi a eclosão de uma guerra civil dentro do Partido Trabalhista. Mas esta guerra tinha um caráter muito unilateral.

Nessas circunstâncias, uma divisão no Partido Trabalhista parecia inevitável. Os Blairistas estavam claramente preparando-se para isso. Os estrategas do capital já haviam tirado a conclusão lógica. Mas, no final, tudo não levou a lugar nenhum. Os Corbynistas foram derrotados pela direita. Porquê? Como foi isso possível, quando Corbyn desfrutou de apoio maciço nas bases do Trabalhismo? A resposta está na própria natureza do reformismo de esquerda.

O papel mais pernicioso foi desempenhado pelo movimento pró-Corbyn, chamado Momentum, que poderia ter-se tornado num ponto focal para milhares de ativistas. Grandes reuniões de Momentum estavam sendo realizadas em diferentes partes do país, onde um clima muito combativo e radical estava em evidência.

Mas a direita mostrava toda a determinação que notavelmente faltava nas esquerdas. Os líderes de Momentum tinham mais medo das bases do que da direita. A cada passo, eles travavam e sabotavam a campanha para a re-seleção dos deputados trabalhistas de direita, coisa que os marxistas exigiam consistentemente desde o início e tinha amplo apoio nas bases. Como resultado, os membros do Partido estavam lutando com as duas mãos atadas às costas.

Mas um elemento fatal foi o papel desempenhado pelo próprio Corbyn. As esquerdas, a começar pelo próprio Corbyn, não estavam preparadas para travar uma luta séria contra a ala direita do Partido Trabalhista Parlamentar (PLP, em suas siglas inglesas). Os líderes de Momentum defenderam sua traição dizendo: “Evitamos a re-seleção porque Jeremy pediu aos membros que o fizessem.”

A desculpa era que “somos pela unidade”. Eles temiam uma cisão com a ala direita do PLP. Mas isso era absolutamente necessário para que as conquistas da esquerda não fossem totalmente destruídas. E foi exatamente isso que aconteceu.

A direita sabe exatamente onde se encontra. Eles perseguem uma política agressiva contra a esquerda, e contra os marxistas em particular, e estavam preparados para ir até o fim, independentemente de quaisquer consequências.

Desnecessário será dizer que, quando a direita partiu para a ofensiva, não deu mostras da pusilanimidade da esquerda. Eles lançaram um ataque feroz, utilizando todo o poder dos média burgueses para caluniar e desacreditar Corbyn. No final, eles efetivamente expulsaram-no, juntamente com um grande número de militantes das esquerdas.

Naturalmente, a corrente marxista foi o alvo principal. Socialist Appeal foi proscrito, mas organizou um contra-ataque muito eficaz, que obteve grande apoio. Em contraste, a esquerda se comportou de maneira covarde, recusando-se a contestar a caça às bruxas de Starmer, que ele conseguiu levar a cabo até o fim.

A crise na Grã-Bretanha

O episódio de Corbyn, que começou com tantas promessas, terminou numa derrota vergonhosa. Milhares de pessoas deixaram o Partido com desgosto e a esquerda foi completamente esmagada. As enormes ilusões despertadas por Corbyn deram lugar a um clima de profundo ceticismo no Partido Trabalhista.

Com o desmoronamento da esquerda, a situação atual agora está se movendo numa direção completamente diferente. Isso, no entanto, não é o fim da história. Por razões objetivas e subjetivas, agora está cada vez mais claro que a Grã-Bretanha é um dos elementos-chave na crise do capitalismo europeu – se não o elemento-chave. De ter sido o país mais estável da Europa há apenas alguns anos, a Grã-Bretanha é agora provavelmente o mais instável. É um dos elos mais fracos da cadeia do capitalismo europeu.

Derrotados no plano político, os trabalhadores voltam-se para a frente industrial. Há o início da radicalização nos sindicatos e a crise do governo Johnson levará inevitavelmente à sua queda.

O pêndulo, sem dúvida, oscilará à esquerda no futuro, especialmente se o Partido Trabalhista sob a liderança de Keir Starmer e dos Blairistas chegarem ao poder em condições de profunda crise social e económica. Isso exporá todas as contradições internas do Partido Trabalhista, temporariamente submersas, mas que podem-se reafirmar com força no futuro.

Isso abrirá sérias possibilidades para a corrente marxista. Tudo depende da nossa capacidade de crescer. E um crescimento sério é possível agora. Embora ainda representemos um fator muito modesto na situação, a seção britânica da CMI tem uma base de quadros experiente, construiu uma base forte entre os jovens, uma organização nacional e um jornal bem conhecido no movimento trabalhista.

De qualquer forma, nossas forças são muito mais fortes do que as que Trotsky tinha na Grã-Bretanha na década de 1930 e têm um nível infinitamente superior. Com táticas corretas, as possibilidades de crescimento são bastante excecionais.

Mudança de humor

A crise atual – que tem caráter internacional – é qualitativamente diferente das crises do passado. Nos últimos dois anos, milhões de pessoas comuns foram lentamente, mas com segurança tirando conclusões. Por toda a parte, sob a superfície da aparente calma, há um enorme descontentamento. As massas estão tomadas por sentimentos de raiva, ira, por um sentimento ardente de injustiça e, acima de tudo, de frustração – uma frustração intolerável.

Elas falam pouco, mas murmuram em voz baixa que o atual estado de coisas não deve ser tolerado. Está ganhando terreno rapidamente a ideia de que algo está muito errado com a sociedade existente. No imediato, via de regra, ainda não estão prontos para agir diretamente contra a ordem estabelecida.

Mais cedo ou mais tarde, com ou sem a liderança necessária, eles entrarão em ação para tomar o seu próprio destino nas suas mãos. Já vimos muitos exemplos disso. Nos últimos anos, vimos poderosos movimentos revolucionários ou pré-revolucionários no Chile, Sudão, Mianmar, Líbano, Hong Kong e muito mais.

A mais recente adição a esta lista foi a revolta popular no Cazaquistão no início deste ano, que começou com protestos dos trabalhadores do petróleo contra o aumento dos preços dos combustíveis. Isso foi um aviso. As mesmas pressões que levaram a esse levantamento estão presentes em muitos outros países.

A classe dominante está ciente do perigo e os estrategas do capital estão fazendo previsões sombrias para o próximo ano. Durante algum tempo, o movimento dos trabalhadores foi prejudicado pelo coronavírus. Mas agora há indícios de um renascimento da luta de classes. A alta dos preços e a queda dos padrões de vida atuam como um estímulo para o aumento das greves.

Os apelos demagógicos à unidade nacional são recebidos com ceticismo quando o cinismo, a ganância e o interesse próprio que a classe dominante demonstrou durante a pandemia são expostos. Um clima de desilusão e raiva que estava crescendo constantemente agora está vindo à tona. O apoio ao status quo e aos governos e líderes existentes está em rápido declínio. Mas tudo isso não leva automaticamente a uma revolução socialista bem-sucedida.

Trotsky disse uma vez sobre a Revolução Espanhola que os trabalhadores espanhóis poderiam ter tomado o poder, não uma, mas 10 vezes. Mas também explicou que, sem uma liderança adequada, mesmo as greves mais tempestuosas não resolvem nada.

Um período prolongado de revolução e contrarrevolução

Existem muitos paralelos entre as décadas de 1920 e 1930 e a situação atual. Mas também há diferenças importantes. Antes da Segunda Guerra Mundial, uma situação pré-revolucionária não poderia durar muito e seria rapidamente resolvida por um movimento na direção da revolução ou da contrarrevolução (fascismo).

Mas este não é mais o caso. Por um lado, a classe dominante carece da base social de massa reacionária que existia no passado. Por outro lado, a degeneração sem paralelo das organizações operárias atua como uma barreira sólida, impedindo o proletariado de tomar o poder. A presente crise, portanto, será prolongada. Com fluxos e refluxos, pode durar alguns anos, embora seja impossível dizer com precisão quanto tempo se prolongará.

Quando dizemos que a crise será prolongada, isso não significa de forma alguma que ela será pacífica e tranquila. Pelo contrário! Entramos no período mais turbulento e conturbado da história dos tempos modernos. A crise afetará um país após o outro. A classe trabalhadora terá muitas oportunidades de tomar o poder.

Mudanças repentinas e bruscas estão implícitas na situação, e podem-se transformar no espaço de 24 horas. E também devemos admitir honestamente que existe o perigo de cairmos na rotina, ao utilizarmos passivamente os mesmos velhos métodos e ao deixarmos de aproveitar as novas oportunidades que nos forem oferecidas.

Em tais períodos, os marxistas devem mostrar o mais alto nível de energia, determinação e flexibilidade tática, e corajosamente chegar às camadas que estão-se movendo numa direção revolucionária.

A situação atual pode durar alguns anos sem produzir uma solução decisiva. Mas esse atraso não é uma coisa má. Pelo contrário, é-nos extremamente favorável, porque nos dá tempo – embora não todo o tempo do mundo! – de construir e fortalecer a nossa organização; recrutar os melhores trabalhadores e jovens, educá-los e formá-los.

Por toda a parte, vê-se uma crise de governo e um estado de ânimo cada vez mais crítico na população, dirigido contra o establishment e todas as suas instituições. Este é especialmente o caso da juventude, que está mais aberta às ideias revolucionárias mais avançadas.

O grande processo de aprendizagem começou. Pode parecer que prossegue lentamente. Mas a história se move de acordo com suas próprias leis e em suas próprias velocidades, que são determinadas por muitos fatores e nem sempre fáceis de determinar antecipadamente.

Recebemos muitos relatos sobre o surgimento de um movimento em direção ao comunismo entre os jovens. Mesmo nos locais mais conservadoras do extremo sul dos EUA, existem camadas importantes de jovens radicais que estão-se considerando comunistas.

Não é um fenômeno isolado. Esses são os principais sintomas que revelam que algo muito importante está mudando na sociedade e os marxistas devem encontrar uma maneira de tirar proveito disso.

Construir a CMI!

Temos que enfrentar os fatos: o fator subjetivo foi atirado para atrás por uma série de fatores objetivos, que não precisamos explicar aqui. Ele existe de forma organizada nas fileiras da Tendência Marxista Internacional, pelo menos em estado embrionário.

Mas um embrião ainda é uma potencialidade abstrata. Para cumprir nosso propósito e nos tornar uma força real na luta de classes, devemos avançar além desse estágio.

A TMI obteve ganhos impressionantes. Estamos crescendo em todos os países, enquanto todos os outros chamados grupos de esquerda, que há muito abandonaram o marxismo, estão em crise, dividindo-se e desmoronando-se por toda parte.

Nossos avanços foram possíveis por nossa atitude intransigente em relação à teoria e por nosso foco na juventude. Como disse Lenin: quem tem a juventude tem o futuro. No entanto, devemos admitir que ainda não estamos preparados para enfrentar os enormes desafios que se nos apresentarão quando menos os esperarmos.

Para que uma organização revolucionária tire pleno proveito de uma situação revolucionária ou pré-revolucionária, é necessário possuir pelo menos um mínimo de quadros experientes e uma organização viável.

Uma organização revolucionária que aspire desempenhar um papel de liderança precisa de um certo tamanho para ser visível à classe trabalhadora. Tais coisas não podem ser improvisadas ou construídas facilmente no calor dos acontecimentos.

Em última análise, tudo depende do nosso crescimento. E isso levará tempo. Trotsky

escreveu em novembro de 1931: “Na atual situação mundial, o tempo é a mais preciosa das matérias-primas”. E essas palavras são mais verdadeiras hoje do que em qualquer outro período da história.

Devemos agir com senso de urgência. Porque se nossas forças não forem suficientes para enfrentar os desafios dos próximos anos, oportunidades importantes serão perdidas. Devemos estar preparados! Nosso slogan deve ser o do grande revolucionário francês Danton:

Audácia, audácia e ainda mais audácia!

Alan Woods

Março de 2022

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